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Panorama: Medicina na Bolívia - 2ª parte

Panorama: Medicina na Bolívia - 2ª parte
Fernando Carbonieri
jan. 23 - 17 min de leitura
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Panorama: Medicina na Bolívia - 2ª parte

Vagas ilimitadas
As vagas ilimitadas fazem com que o número de estudantes cresça a cada ano. Quem chegar com os documentos necessários, inscrever-se e pagar a matrícula, faz o curso, sem qualquer processo seletivo. O objetivo é arrebanhar o maior número possível de alunos.
 Para isso, contam – além da propaganda boca a boca – com a ajuda das agências de assessoria no Brasil. Mas há outros estratagemas. A Ucebol, por exemplo, tem a beca promotora (bolsa de estudo promocional). Trata-se de um desconto de 10% na mensalidade, concedido aos alunos a cada novo colega que apresentam. O brasileiro Weslley, que prefere não informar seu sobrenome – conhecido como Weslley “da Ucebol” – conseguiu nessa universidade isenção total das mensalidades e matrículas deste ano, para si e para sua mulher, Janete. E já tem saldo de 50% de desconto para um dos dois em 2013.

Marketing agressivo: Weslley “da Ucebol” e sua mulher, Janete, ganham 10% de desconto na mensalidade a cada novo aluno que apresentam à faculdade

Como negócio, as universidades vão de vento em popa. Algumas delas têm, inclusive, mais de uma escola médica. Tanto a Udabol – maior delas – quanto a Unifranz têm três faculdades de Medicina cada: em Santa Cruz, Cochabamba e La Paz. O dono da Udabol, Martin Dockweiler Cardenas, colecionador de carros de luxo, já é considerado o terceiro homem mais rico do país. A Univalle possui unidades em Cochabamba e em La Paz.

A criação de novas escolas médicas, nos últimos anos, dando vazão ao fluxo crescente de brasileiros, é alimentada pela informação – alardeada pelos dirigentes das faculdades e pelos alunos – de que o Brasil necessita de mais 300 mil médicos, além do número atual.

Não são apenas as escolas que se beneficiam com a presença maciça de brasileiros. A economia do país – principalmente a das cidades de Santa Cruz e Cochabamba – é afetada diretamente. Os cerca de 20 mil estudantes, que gastam em média US$ 700 (R$ 1,5 mil) por mês, injetam na economia boliviana cerca de US$ 14 milhões por mês, ou seja, US$ 168 milhões, anualmente. Com renda alta para o padrão boliviano, eles aumentam a demanda por restaurantes, muitos deles brasileiros; lavanderias, serviços de táxi, supermercados, carros e motos, entre outros – além de aquecer o setor imobiliário.

O número de alunos refletiu-se, até mesmo, no trabalho dos consulados. “Nossa missão é ajudar a comunidade de brasileiros, o que, no caso de Cochabamba, significa estudantes. Por causa deles, passamos para a categoria de consulado-geral. Aumentamos, inclusive, o horário de atendimento, que passou de meio-período para integral, das 8 às 18 horas. Em geral, o que mais precisam é de serviço notarial, como passaportes e legalização de documentos escolares, ao chegar aqui e quando voltam ao Brasil”, diz o cônsul-geral Fernando Vidal.

Rumo à fronteira
Visando atender a essa demanda, as universidades estão começando a instalar escolas médicas junto à fronteira com o Brasil. É o caso da Universidad Amazônica de Pando, que abriu, recentemente, uma faculdade de Medicina em Cobija, capital do Departamento de Pando, contígua às cidades brasileiras de Brasileia e Epitaciolândia, no Acre. Para ir de uma cidade a outra basta atravessar uma ponte. Segundo o médico neurocirurgião e diretor do Colégio Médico de Pando, Freddy Capriles Vargas, a faculdade já conta com 1 mil estudantes brasileiros.

A Ecológica já planeja fazer o mesmo, informa sua presidenta, Sandra Otero. A universidade comprou um grande terreno em Puerto Suárez, na fronteira com o Brasil, ao lado da cidade de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. O objetivo é ali instalar mais uma escola de Medicina, além da que tem em Santa Cruz. Um dos fundadores e ex-reitor da Ecológica – que, segundo uma liderança médica, seria o seu proprietário – é o atual embaixador da Bolívia no Brasil, Jerjes Justiniano Talavera.

Anibal Cruz

Falta de prática

      O mais grave, porém, é a falta do ensino da prática médica – sobretudo nos níveis secundários e terciários – nas faculdades privadas bolivianas, além do baixo nível de muitos docentes. “Nas públicas, os professores são institucionalizados, por meio de exames de competência, e bem pagos. Já nas privadas, os docentes são convidados e mal remunerados”, aponta o médico-cirurgião, secretário-geral do Colégio Médico de Cochabamba e professor titular da Universidad Mayor de San Simon (estatal), de Cochabamba, Anibal Cruz (foto ao lado).

Ao todo, tanto nas escolas públicas como nas particulares, o curso de Medicina é de sete anos. Nas particulares, o curso é assim dividido: três anos de pré-clínica, três de clínica, um de internato rotatório e Exame de Grado (prova de final de curso realizada em algumas faculdades).

O grande problema é que os estabelecimentos de saúde nos quais os alunos das escolas particulares podem fazer internato são escassos. Enquanto os das faculdades públicas têm acesso aos hospitais públicos – apenas uma universidade particular possui hospital próprio, a Univalle –, as demais disputam convênios com hospitais e clínicas privadas, mas dizem que seus alunos “fazem também internato no sistema público”. A informação foi contestada por líderes médicos bolivianos em entrevista à Ser Médico. “O que acontece é que alguns docentes de escolas públicas permitem exceções e deixam uns poucos estudantes de escolas particulares exercer alguma prática nos estabelecimentos públicos”, explica Anibal Cruz.

Único entre os particulares de Cochabamba e Santa Cruz, Hospital da Universidad del Valle tinha quase todos os leitos vagos quando a Ser Médico o visitou

Para contemporizar, algumas das escolas particulares têm projetos de hospital que não saem do papel, mas são usados como propaganda. A Udabol/Santa Cruz, por exemplo, conta com um prédio, construído há anos – que seria destinado a uma instituição hospitalar para treinar seus mais de 5 mil alunos –, até agora inativo. Em razão do deficiente ensino da prática médica, as particulares focam as aulas em anatomia e atendimento básico, mesmo assim com deficiências.  É importante não esquecer que, além dos 20 mil brasileiros, há também os estudantes bolivianos e de outras nacionalidades.

“Essa realidade é assustadora”, opina o cirurgião-gastroenterologista, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e conselheiro do Cremesp, Gaspar de Jesus Lopes Filho. “O ensino da prática médica é fundamental. Todo aluno de Medicina tem de ter o conhecimento e o domínio das habilidades, que vem do exercício supervisionado da profissão”. Qual a diferença – pergunta – de uma faculdade de Direito, por exemplo, e uma de Medicina? A segunda, responde, “demora um ano a mais e seus cursos têm que ter período integral porque os estudantes devem fazer a prática em hospitais, em geral a partir do 3º ano, nos três níveis de atendimento, primário, secundário e terciário. Isto é imprescindível na formação de um médico”.

Questionados a respeito, quase todos os brasileiros entrevistados em Santa Cruz e Cochabamba desconversam. Parte interessada, defendem as faculdades onde estudam. Quase em uníssono dizem que “quem faz o curso é o aluno”. Este também foi o argumento de Adão Mendonça, de Rondônia, estudante da Ecológica. Ele admite, porém, que “muitas famílias pensam que os filhos estão aqui para estudar, mas na verdade eles não fazem isso. Há deficiências, sim, e não se cobra tanto quanto no Brasil, mas depende também do aluno. Se for responsável e estudar bastante, ele aprende”.

Há até mesmo rumores de compras de provas ou de disciplinas inteiras, mas nenhum estudante admite essa prática. A informação, contudo, foi confirmada pelo ex-aluno Guilherme Ghiraldini, que estudou Medicina durante vários anos na Bolívia, e praticamente recomeçou o curso no Brasil. Ele relata que “se o estudante quiser ir à aula, vai; se não for, não tem problema, não há nenhum controle. Alguns professores vendem os exames por US$ 100 ou US$ 150. Tinha um professor que fazia uma prova impossível de os alunos passarem, e aí eles tinham de comprá-la”. A causa, segundo ele, é que “os médicos não são valorizados e ganham muito mal. Um catedrático me disse que recebia, por mês, por volta de US$ 150”.

Filho de pai boliviano e mãe brasileira, Ghiraldini sempre morou no Brasil. Ao todo, entre idas e vindas, estudou cinco anos na Bolívia, no período de 2002 a 2009. Inicialmente, fez o curso na Univalle, em Cochabamba, até o 3º ano. Depois, transferiu-se para a Udabol, em Santa Cruz de la Sierra. Em 2009, voltou ao Brasil para estudar Medicina na Universidade Presidente Antonio Carlos (Unipac), em Juiz de Fora. “Hoje posso falar de boca-cheia, Medicina é aqui. O sonho de todos é estudar no Brasil, mas no começo eu não conseguia passar. Só tentava vestibular em São Paulo, foi um erro”.

Sobre o fato de ter perdido alguns anos de estudos, ele diz que ficou “triste e feliz” ao mesmo tempo. “Consegui algumas dispensas de disciplinas, mas praticamente tive de recomeçar tudo. Por um lado é bom, pois aprendo mais. Acho que foi a melhor coisa que fiz. Tenho um amigo que fez a mesma coisa. Estava no 11º período em uma escola boliviana e passou no vestibular aqui, voltando para o 3º período. Lá, apesar de estar quase terminando o curso, ele nunca tinha auscultado um sopro cardíaco, veio fazer isso aqui”. Segundo Ghiraldini, “o nível é muito baixo. Se o aluno não for extremamente dedicado, não vai aprender nada. E conclui, taxativo: “os estudantes que se formam lá não estão preparados para exercer a Medicina”.

Outro ex-aluno, Audiellis Teixeira Pim, também abandonou o curso de Medicina na Bolívia, onde estudou durante quatro anos, de 2004 a 2007. Fez até o terceiro ano e desistiu em decorrência “do nível acadêmico e da dificuldade para conseguir a validação do diploma”. Segundo ele, apenas em Anatomia havia muitas aulas práticas e não se lembra se a escola mantinha convênio com algum hospital. Atualmente estuda na Universidade Ingá (Uningá), no Paraná.

Consulados
As deficiências do curso de Medicina – inclusive os rumores de compra de provas – foram confirmadas também pelo cônsul-geral Colbert Soares. Ressalvando não ter as qualidades técnicas para aferir o desempenho das escolas médicas bolivianas, ele admite que “relatos de compra de provas chegam até nós. Já ouvi isso de vários alunos, mas é importante não se apressar a um juízo de valor peremptório, pois sabemos também que há bons alunos”.

Existe de fato, aponta, uma grande facilidade devido à ausência de um critério seletivo para se entrar na faculdade e à falta de limite de vagas. “Ouvimos também, frequentemente, queixas de alunos sobre o nível do ensino. Segundo eles, as condições de estudo não são as que esperavam, como, por exemplo, salas superlotadas e professores que não cumprem as horas do currículo escolar”.

Soares chama a atenção também para a disparidade no nível de formação dos brasileiros. “Muitos chegam despreparados, inclusive para entender o espanhol. As faculdades acabam se adaptando e os professores aceitam perguntas em português”.

O cônsul acredita que o progressivo aumento de brasileiros “não deve alterar-se nos próximos anos, pois uma grande parte não consegue passar nos vestibulares no Brasil e as faculdades particulares são muito caras. Na Bolívia estão dadas as condições para receber esses estudantes”.

Exame de grado e Revalida
Antes de receber o diploma, os alunos de algumas faculdades privadas bolivianas fazem, ao final do curso de Medicina, o Exame de Grado. É uma avaliação prática, analisada por uma comissão composta por um membro do Colégio Médico local, dois representantes do governo e dois das faculdades particulares. O índice de reprovação é muito baixo. “Somos muito brandos para dar notas”, admite o médico e presidente dos Sindicatos Médicos e Ramos Afins da Caixa Petroleira, Edgar Villagas Fallo.

No Brasil, os egressos de escolas estrangeiras devem fazer o exame do Revalida ou prestar prova em uma universidade pública que não tenha aderido ainda a esse processo. Só assim obterão o CRM e o direito de exercer a Medicina (confira abaixo box sobre o Revalida). Apesar do baixo índice de aprovação (apenas 12% do total dos candidatos nas duas edições do exame nacional realizadas até agora), os brasileiros que estudam na Bolívia, surpreendentemente, parecem minimizar a questão, ecoando suas faculdades, as quais passam a ideia de que a revalidação é muito fácil. Alguns alunos, que parecem sinceramente dedicados, dizem não temer os exames porque estão “se preparando e estudando muito para fazê-los”. Inclusive, dizem, “apoiam o Revalida”. Outros, como é o caso de Pamela Dall´Orto Cruz, de Mato Grosso, pretendem fazer um cursinho no Brasil, antes de se submeter a alguma prova.

A aparente despreocupação com a revalidação do diploma explica-se, entretanto, porque a maioria acredita que a conseguirá por meio de processos paralelos. Por exemplo, a proposta apoiada por alguns membros do Ministério da Educação brasileiro, de revalidar o diploma de egressos após dois anos de trabalho no Programa de Saúde da Família (PSF) em lugares longínquos, é citada pelos estudantes como se já fosse realidade. Muitos estudantes, como Weslley “da Ucebol”, apontam também a revalidação independente da Universidade de Pernambuco, que ainda não aderiu ao Revalida.

A transferência para algumas faculdades particulares brasileiras, no 4º ou 5º ano, é também uma alternativa citada por muitos estudantes. A falta de locais para o ensino da prática médica faz com que até mesmo as escolas bolivianas optem pelo internato no Brasil, por meio de convênios com cursos médicos privados brasileiros. É o caso da Ecológica. Sem citar nomes, seu decano, Erwin Saucedo Fuentes, informa que a universidade “fez convênio com escolas do Paraná para que os alunos procedentes de nossa faculdade possam fazer internato”. E acrescenta: “queremos aumentar o número de parcerias com escolas e hospitais do Acre, Rondônia e demais Estados brasileiros limítrofes com a Bolívia”.

A informação foi confirmada pela aluna da Católica, Nathaly Karouz, que quer continuar o curso em uma faculdade brasileira. Segundo ela, “tem muita gente fazendo transferência para faculdades de Medicina de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, entre outras”. Já Adão Mendonça garante conhecer “vários ex-alunos que fizeram a revalidação, mas outros tentam há cinco anos e, até agora, não conseguiram”.

Trabalho clandestino
A dificuldade para se conseguir o CRM faz com que muitos egressos, da Bolívia ou de outros países, exerçam a Medicina clandestinamente no Brasil, o que torna a situação ainda mais complicada. O brasileiro A.C.V., que se formou há um ano em uma faculdade boliviana, conta que trabalha, desde o início de 2012, em uma cidade da Bahia, com o CRM de um colega brasileiro. “Faltam muitos médicos na região onde estou. Por isso, trabalho em três equipes do PSF e estou ganhando R$ 26 mil por mês”, vangloria-se. Ele falou à Ser Médico em Santa Cruz de la Sierra, onde estava para buscar sua documentação escolar. O ex-aluno Guilherme Ghiraldini confirma que “muitos ex-colegas trabalham clandestinamente, principalmente em ambulâncias”.

Para o presidente do Cremesp, Renato Azevedo, essa situação é grave e intolerável (leia editorial na pág. 1 desta edição). “A dimensão do problema dos egressos de ou¬-tros países, revelado na reportagem da Ser Médico, mostra a importância de um exame de proficiência isento e sério como o Revalida. Porém, é preciso que ele seja realmente nacional e que não haja processos paralelos de revalidação de diplomas estrangeiros por universidades que não aderiram a ele. Urge que o MEC e o Ministério da Saúde estruturem melhor, fortaleçam e garantam o Revalida como exame único em nível nacional”. É preciso ficar claro, assegura, “que o Cremesp está também preocupado com o nível das escolas médicas brasileiras e, por isso, defendemos também um exame de proficiência para os egressos formados aqui. Promovemos o Exame do Cremesp há sete anos, e o tornamos obrigatório a partir de 2012, embora, devido à legislação, a concessão do CRM não esteja condicionada ao resultado da prova”. O que está em jogo, conclui Azevedo, “é a saúde da população”.


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